Atlas sobre os anfíbios e répteis de Angola publicado 123 anos depois da sua primeira versão

Foi publicado no passado dia 28 de setembro, o Atlas dos anfíbios e répteis de Angola, a primeira obra do género desde 1895. A obra apresenta-se como uma referência fundamental para o estudo da biodiversidade do país, um dos mais biodiversos do continente, e apresenta dados para quase 400 espécies diferentes.

Em 1895 José Vicente Barbosa du Bocage, diretor da secção zoológica do Museu Nacional de Lisboa, publicava uma das obras mais importantes da sua prolífica carreira científica, o primeiro Atlas dos Anfíbios e Répteis de Angola, intitulado Herpétologie d’Angola et du Congo. Nessa obra, escrita em francês, a então língua-franca da ciência, e com edição do Ministério da Marinha e das Colónias, o zoólogo Português apresentava tudo o que até então se conhecia da fauna de anfíbios e répteis dessa então colónia Portuguesa – cerca de, 32 espécies de anfíbios e 154 espécies de répteis. Passados 123 anos conhecem-se muitas mais, embora se esteja longe de conhecer a real diversidade daquele que é um dos país mais biodiversos de África.

Durante o século XIX e boa parte do século XX os anfíbios e répteis de Angola foram alvo de estudo de dezenas de investigadores de todo o mundo. Expedições patrocinadas por museus e universidades Europeias, Norte-Americanas e Africanas (onde se incluíram algumas instituições Angolanas) e lideradas por alguns dos mais influentes especialistas mundiais, ajudaram decisivamente na evolução do conhecimento sobre a diversidade e distribuição destes animais no país. Destas expedições resultaram coleções importantíssimas, e centenas de publicações científicas onde se apresentavam os seus resultados. No entanto, esse estudo foi interrompido durante os longos e duros anos de conflito armado que assolaram Angola durante um último quarto do século passado, tendo apenas sido recentemente retomados após o advento da paz no país.

Apesar dos avanços registados na área após a publicação da obra de Bocage, todos estes dados e resultados encontravam-se dispersos por dezenas de obras especializadas, de difícil acesso quer para o público quer para os próprios especialistas, escritas em inglês, francês, alemão, e português, tornando a sua consulta consideravelmente complicada. Face à necessidade de compilar todos estes dados num único local, de fácil acesso para a comunidade científica e a todos os interessados, uma equipa internacional de zoólogos decidiu pôr mãos à obra e produzir uma atualização à obra do zoólogo Português do século XIX. Publicado nos Proceedings of the California Academy of Sciences, a revista científica de uma das mais influentes instituições científicas mundiais no que toca ao estudo da biodiversidade, o novo Atlas intitula-se “Diversity and Distribution of the Amphibians and Terrestrial Reptiles of Angola”, e lista 117 e 278 espécies de anfíbios e répteis, respectivamente, um número bastante superior aquele conhecido no final do século XIX. A obra é assinada por dois investigadores Portugueses, em coautoria com colegas norte-americanos, e têm o apoio direto de instituições Portuguesas, Norte-Americanas e Angolanas.

“O presente Atlas representa um inestimável auxílio para o estudo da História Natural de Angola” afirma Paula Cristina Francisca Coelho, atual Ministra do Ambiente de Angola, no prefácio que assina na obra. O Ministério do Ambiente de Angola, através do Instituto Nacional da Biodiversidade e Áreas de Conservação (INBAC), é um dos principais promotores do Atlas. Este apresenta-se como um resultado de projecto internacional para o estudo da herpetofauna Angolana, e que nos últimos anos têm visto os seus resultados cobertos na comunicação social internacional, como foi o caso da descrição do lagarto espinhoso da província do Namibe em 2016 (https://www.publico.pt/2016/03/17/ciencia/noticia/angola-tem-agora-tres-lagartosespinhosos-1726339) ou a mais recente descoberta de um sapo sem ouvidos na mesma província Angolana (https://www.dn.pt/vida-e-futuro/interior/descoberta-em-angola-nova-especie-de-sapo-pigmeu-que-nao-tem-ouvidos-9732690.html; https://www.publico.pt/2018/08/10/ciencia/noticia/sapo-sem-ouvidos-descoberto-em-angola-1840525), ambas espécies até então desconhecidas para a ciência.

As quase 400 espécies de anfíbios e répteis conhecidas para o país apresentam uma espetacular diversidade de formas, tamanhos, cores e estilos de vida. Entre elas encontram-se um plêiade de coloridas relas, rãs, sapos, três espécies de crocodilos, tartarugas marinhas e terrestres, cágados, lagartos, camaleões, osgas, e serpentes, algumas delas altamente venenosas. Muitos destes ocorrem única e exclusivamente em Angola. Esta diversidade deve-se em grande parte à situação geográfica de Angola e à grande diversidade de biomas – das florestas tropicais de Cabinda, ao deserto do Namibe, passando pelas zonas montanhosas de escarpa, o país possui um gradiente perfeito entre as faunas centro Africanas e aquelas de zonas mais austrais. No entanto, o conhecimento sobre a diversidade das espécies que ocorrem no país apresenta ainda muitas lacunas.

O novo Atlas teve no entanto a sua génese através da tese de mestrado da sua primeira autora. Enquanto aluna do Mestrado em Biologia da Conservação da Universidade de Évora, Mariana Marques, actualmente estudante de doutoramento no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (CIBIO-UP) e colaboradora do departamento de zoologia do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa (MUHNAC), propôs-se a compilar toda a informação disponível sobre a diversidade e distribuição de anfíbios e répteis de Angola. Esse objectivo levou-a a consultar e compilar milhares de dados bibliográficos presentes em quase 1000 obras científicas, datadas entre 1840 e 2017.

O resultado é uma obra atualizada, com mais de 500 páginas, onde se apresentam, mapeiam e descrevem as quase quatro centenas destes animais que actualmente se conhecem para o país. Para além do mapeamento da distribuição em Angola de todas as espécies de anfíbios e répteis que se conhecem para o país, a obra apresenta ainda dados sobre distribuição global, o estatuto de conservação, a história nomenclatural e taxonómica e a compilação de toda a bibliografia relevante para cada espécie, bem como um extenso conjunto de textos sobre a geografia, o clima, os habitats, a história da investigação científica, os padrões biogeográficos e os problemas de conservação em Angola.

“Queremos que esta obra seja vista como uma ferramenta para o progresso dos estudos sobre a biodiversidade de Angola” diz Mariana Marques. “Ter toda a informação sobre estes animais disponível num único sítio facilita imenso o trabalho de investigação, pois permite-nos muito facilmente contextualizar a relevância das novas descobertas e levantamentos que fazemos no campo.”. Surpreendentemente, uma das mais interessantes mais-valias do Atlas é o de assinalar as zonas que pior se conhecem no país: “Após analisarmos os dados no seu conjunto, podemos identificar várias áreas do país para as quais não temos um único dado. Estas são das áreas prioritárias para futuros levantamentos, pois não só nos ajudam a completar a “big picture”, como é nelas que potencialmente podemos descobrir espécies até então desconhecidas para o país e para a ciência” explica a autora.

A publicação deste Atlas não é no entanto o corolário do projecto, mas antes um ponto de partida, como assegura Luis Ceríaco, também ele autor do Atlas, curador das coleções de anfíbios e répteis do MUHNAC, e um dos investigadores responsáveis pelo projeto internacional. “Tal como atualizámos a obra de Bocage, esperamos que a nossa seja atualizada. Quanto mais depressa melhor, pois isso significará que a herpetologia Angolana se está a desenvolver” afirma. De acordo com Luis Ceríaco, estão em preparação várias novas obras e publicações com resultados do projecto, várias delas da autoria de alunos e investigadores Angolanos que se encontram inseridos no projeto.

A obra encontra-se disponível em versão impressa, mas está também disponível de forma gratuita em versão digital (http://researcharchive.calacademy.org/research/izg/SciPubs2.html).

Mariana Marques e Luís Ceríaco são biólogos e Mestres em Biologia da Conservação (MBC) pela Universidade de Évora; Luís Ceríaco é também Doutor em História e Filosofia da Ciência, grau conferido igualmente pela UÉ.

A apresentação oficial do Atlas está prevista para o mês de Outubro em Luanda.

Citação: Marques, M.P., Ceríaco, L.M.P., Blackburn, D.C., & Bauer, A.M. (2018) Diversity and Distribution of the Amphibians and Terrestrial Reptiles of Angola. Atlas of Historical and Bibliographic Records (1840–2017). Proceedings of the California Academy of Sciences, Series 4, 65: 1–501.

 

Publicado em 02.10.2018
Fonte: GabCom | UÉ